domingo, 13 de maio de 2007

P1: A NOSSA COMPANHIA


1.1 – Organização
A Companhia de Caçadores 2700 (C. Caç. 2700) teve como unidade mobilizadora o Regimento de Infantaria n.º 2, aquartelado na cidade de Abrantes e estava enquadrada no Batalhão de Caçadores 2912 (B. Caç. 2912), do qual faziam também parte a C. Caç. 2699, comandada pelo Capitão Miliciano João Fernando Rosa Caetano, responsável pelo sub-sector de Cancolim, a C. Caç. 2701, comandada pelo Capitão Carlos Trindade Clemente, responsável pelo sub-sector do Saltinho, bem como a Companhia de Comando e Serviços (CCS), comandada pelo Capitão Joaquim Rafael Ramos dos Santos e que se encontrava adstrita ao Comando do Batalhão, sediado em Galomaro.

Foi para nós extremamente frustrante que da Instrução de Especialidade, que decorreu entre Dezembro de 1969 e Janeiro de 1970, em Abrantes, só 24 praças tivessem transitado para a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO). Para além do afeiçoamento que se tinha criado, havia que começar quase tudo de novo, com a agravante de muitas das novas praças estarem rudimentarmente preparadas, tornando-se necessário adaptá-las ao ritmo que anteriormente tínhamos imprimido. Só com um grande esforço e a total entrega de oficiais, sargentos e praças se conseguiu atingir o nível que a todos desse confiança para a execução de tarefa que se avizinhava, onde o valor supremo (a vida) passaria a estar em jogo todos os dias.
No essencial, durante o IAO, que decorreu entre 23 de Janeiro e 28 de Fevereiro de 1970, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Santa Margarida, local onde se deu a organização do Batalhão, foram treinadas situações de: patrulhamento, reacções a emboscadas, emboscadas, golpes de mão, batidas de zona, cercos e treino de tiro, na tentativa de preparar os militares o melhor possível para uma realidade de guerra que se lhes iria deparar.
A 16 de Abril teve lugar a festa de despedida do Batalhão. Após uma semana de licença, penosa para alguns de nós (no meu caso pessoal não tive coragem de me despedir de meus pais), pelas 3 da manhã de 24 de Abril partimos de Santa Margarida utilizando como meio de transporte o combóio, tendo desembarcado no Cais de Alcântara 3 horas e meia depois.
Batiam as 12 horas quando largamos da Gare Marítima de Alcântara no navio “Carvalho Araújo” com destino à Guiné.
Às 21 e 30 de 30 de Abril o navio fundeou ao largo de Bissau, iniciando--se pela manhã do primeiro de Maio o desembarque através do Rita Maria. Pernoitámos no Depósito de Adidos em Brá. Após umas noites mal dormidas, pelas 6 horas do dia 5 de Maio embarcámos na LDG (Lancha de Desembarque Grande) “Montante”[1] até ao Xime de onde partimos em viaturas auto, quer militares, quer civis (recordam-se do Sr. Regala?), rumo a Dulombi.

1.2 – Efectivos
Embarcámos para a Guiné sem que o quadro de efectivos que competia à nossa Companhia estivesse totalmente preenchido. É nesta perspectiva que em Junho vimos chegar o 1.º Sargento Helder Panóias, elemento que se viria a demonstrar extremamente importante pela forma dedicada, eficiente, competente e prestimosa como desempenhou a sua missão. Pela mesma altura chegaram, também, os soldados David Coelho Jorge e José Luís Martins Monteiro. Lembrar-se-ão deste último, o Zé Luís, o básico. Foi o verdadeiro “bobo da corte”, onde ele estivesse não havia má disposição. Nunca me esquecerei de uma história que ele nos contou. Certo dia teve a desdita de, ao atravessar uma rua em Almada, ser atropelado por um automóvel. Ficou em tal estado que no hospital deram-no como morto sendo transferido para a morgue. Entretanto, um técnico alemão que estava a dar assistência ao Cristo-Rei, em Almada, estatela-se, e este sim falece realmente. Quando o funcionário da morgue coloca o alemão ao lado do Zé Luís, este mexe-se. Foi a sua salvação, e a nossa, pois sem ele a comissão tinha sido muito mais monótona.
Em Agosto é altura para recebermos o soldado Fernando António Cunha Lopes.
Em Dezembro, chega o Furriel João F. Costa, bem como o Furriel Enfermeiro Joaquim de Jesus Alves, em substituição do Furriel Helder da Silva Coelho que havia entretanto baixado ao Hospital Militar de Doenças Infecto-Contagiosas (HMDIC).
Em Fevereiro de 1971, a Companhia recebe os soldados Manuel Fernando Cardoso de Almeida e Luís Gonçalves Alves. Chega também o Alferes Helder Balsa que vem fazer um estágio para a Formação de Comandantes de Companhia. Por esta altura, o Exército começava a ter sérias dificuldades para, dentro das suas fileiras, mobilizar capitães do Quadro que comandassem as sucessivas companhias de que necessitava, quer para render aqueles que estavam em fim de comissão, quer para ampliar a sua acção em novas frentes de batalha nos três teatros de operações, tendo sido utilizado o estratagema de graduar Alferes Milicianos, que se haviam distinguido no Curso de Oficiais Milicianos, em Capitães.
Em Março demos as boas-vindas ao 1.º Cabo Casimiro dos Santos Canelhas, passando a pertencer à Companhia, a partir de Maio, o soldado José da Silva Guerra, vindo da CCS do Batalhão, ao mesmo tempo que o soldado José da Costa Marinho faz o sentido inverso, no que é acompanhado, em Agosto, pelo soldado Serafim Martins Marques Carneiro. Em Setembro é recompletado o quadro com a chegada do soldado José Luís da Silva Navalha. Igual situação se passa, em Novembro, com a chegada dos soldados Carlos Alberto de Oliveira Rodrigues e José da S. Alves. Por outro lado, o Furriel João Costa é transferido para a C. Caç. 14 do B. Art. 3844, experimentando sentido inverso o 1.º Cabo António Fernando da Silva, vindo da C. Caç. 3327.

1.3 – Operações
A primeira operação executada pela Companhia teve lugar a 22 de Março de 1970 e tinha como nome de código “Ducado Interno”. Nela participaram o 1.º e 3.º Pelotão. Recordo que foi uma operação envolta em grande expectativa, não só por ser a primeira, como pelo facto de existir uma grande probalidade de haver contacto directo com o inimigo, já que este poderia estar acampado no Jifim. Esta probabilidade era cimentada no facto de os elementos da Companhia que nós acabávamos de render, na parte final da comissão, numa atitude de certa forma compreensível, se defenderem, não pretendendo correr riscos de serem emboscados tivessem aligeirado a sua prestação operacional. Tal abrandamento permite que o inimigo se instale no território ao pressentir que não há acção por parte das nossas forças. Esta operação (e todas as outras) tinha como finalidade “detectar vestígios da passagem ou presença do inimigo, capturando-o ou destruindo-o se este se revelar” como nos é relatado nalguns documentos insertos no maço obtido no Arquivo Histórico Militar. A título de curiosidade refiro que esta operação teve o seguinte itinerário: Vendu Columbai, Rio Nhassi, Rio Tangeoul, Rio Lagui, Manguel, Rio Bissi, Paiai Numba, Rio Nhagama, Rio Sinhaudi, Rio Cantoro e Vendu Cantoro.
Em 10 de Agosto, a fim de patrulhar a região do Jifim, realiza-se a operação “Ligeiros Quadros”. Próximo daquele local é accionada uma mina a/c, resultando a morte do 1.º Cabo António Carrasqueira e 4 milícias. Foi o primeiro momento negro vivido pela nossa Companhia e particularmente pelo 2.º Pelotão, do qual o Carrasqueira fazia parte, militar muito estimado por todos os camaradas.
No total, realizámos 44 operações todas com nomes de código que iam desde “Menina Rabina” até “Cidade Maravilhosa”. Será que o autor destes nomes ao inventá-los se estaria a inspirar na “Spaguetti” em relação à primeira, ou no Jifim, em relação à segunda? Sim, que nestas alturas nem nos lembramos que existe uma cidade maravilhosa, de nome Rio de Janeiro.
A intensa actividade que a nossa Companhia exerceu quer através de operações quer através de patrulhamentos, duma forma equilibrada e procurando cobrir toda a quadrícula que lhe estava distribuída, terá certamente contribuído para que o inimigo não se instalasse na nossa zona.
Em todas as operações realizadas nunca tivemos contacto directo com o inimigo.

1.4 – Incidentes
A 14 de Dezembro de 1970 são detectadas 6 minas anti-pessoal (a/p) em Padada, enquanto decorria a operação “Diamante Indiano”.
Em Fevereiro de 1971, é detectada e neutralizada uma mina a/c, em Padada e accionada uma mina A/P, sem consequências pessoais, já que foi accionada por uma viatura. Foram, também, encontradas 50 munições de PPSH.
A 18 de Fevereiro, a 300 metros do aquartelamento, foi accionada por uma viatura uma mina a/c da qual resultaram 2 mortos, António Vasconcelos Guimarães e José Augusto Dias de Sousa e 3 feridos.
A 25 de Abril, pelas 17 horas, forma-se violento tornado, que na sua plenitude arranca a cobertura de zinco do pavilhão que servia de Secretaria, Quarto dos Oficiais e Quarto dos Sargentos bem como da Caserna. Debaixo desta pesada estrutura ficam o Furriel Moniz e dois soldados, tendo um destes sofrido uma fractura exposta da perna.
Na noite de 1 de Outubro quando 2 secções da CCS executavam um patrulhamento nas Duas Fontes, foram emboscadas por um grupo inimigo estimado em 50 homens, causando 5 mortos às nossas tropas. Dois destes, pertenciam á nossa Companhia e estavam destacados no Batalhão. Eram o Rogério António Soares e o José Guedes Monteiro.
A 5 de Outubro, quando uma coluna se deslocava para Galomaro, uma das viaturas accionou uma mina a/c, causando 1 morto, Luís Vasco Fernandes e 3 feridos.
Não posso precisar no tempo, mas houve um incidente que muito me marcou pela sua brutalidade. Certa noite vem ter ao quarto dos Oficiais um sentinela dizendo que tinha ouvido rebentar uma armadilha provavelmente accionada por qualquer animal, pois ouvia gemidos. Mal o sol raiou uma secção deslocou-se ao local da deflagração dando então com dois gilas feridos, um ligeiramente, mas o segundo com graves ferimentos numa perna. Perante tal cenário interroguei-me como foi possível ter ficado toda a noite a esvair-se em sangue não tendo sucumbido. Levados para a Enfermaria aí lhes foram prestados os socorros possíveis, sendo de imediato evacuados para Bissau num helicóptero. Embora um dos nossos milícias, que os interrogava em determinado dialecto, me asseverasse que “eram turras de verdade” eu naquele olhar, para além do sofrimento óbvio, vi também uma certa candura, de não comprometimento. Estaria a ser ingénuo? Na realidade, não faria muito sentido utilizar uma zona de conflito como corredor de passagem. Numa entrevista dada por Pedro Pires ao Jornalista do Diário de Notícias (12/9/2000, pg.7), aquele referia que a informação que obtinham era “mandada por .... ou pelos célebres “djilas”, os comerciantes que iam e vinham”.
Estariamos mais ou menos a meio da nossa comissão de serviço, quando vejo chegar ao aquartelamento os dois pelotões que horas antes tinham saído para uma operação que deveria durar 2 dias como quase todas as outras. Logo adivinhei que algo de grave se estaria passar. O grupo de combate tinha sido atacado por enxame de abelhas que deixaram alguns dos militares (recordo o estado em que chegou o nosso Capitão) em estado lastimoso tendo mesmo dois ou três desmaiado.

1.5 – Flagelações
Sofremos algumas flagelações (9) ao aquartelamento com uma duração muito curta, nunca excedendo os 2 minutos e executadas a longa distância sempre com armas ligeiras (costureirinha) e ao cair da noite, o que permitia aos grupos debandar a coberto da escuridão na expectativa de que não seriam perseguidos.

No dia seguinta à nossa chegada a Dulombi[2], estávamos a sofrer a primeira flagelação (6 de Maio), mantendo-se uma certa pressão durante os primeiros 6 meses de permanência no território.
Inexplicavelmente, ou talvez não, estivemos praticamente um ano sem ser flagelados (Setembro de 70 a Agosto de 71). Contudo foi durante este período que accionámos 1 mina a/c (18 de Fevereiro).
Se nos primeiros tempos houve um certo receio, por de início desconhecermos qual a amplitude que a flagelação iria ter, com o tempo fomo-nos habituando e praticamente já ninguém corria para os abrigos quando se ouvia a “costureirinha” lá ao longe. Só o “Russo” saltava para o morteiro de longo alcance, garantindo peremptoriamente que alguma das “ameixas” com que tinha presenteado o inimigo, teria alcançado o seu objectivo.

Datas das flagelações
6 de Maio 1970 - 28 de Junho - 3 de Julho - 11 de Julho - 20 de Agosto, 23 de Setembro.
3 de Agosto 71 - 15 de Outubro - 15 de Novembro

1.6 - Contacto com a população
A população civil de Dulombi rondaria os 250 habitantes. Era abúlica por natureza na linha da filosofia fatalista característica do povo fula. A agricultura era a sua única actividade produtiva e limitada, de forma insipiente, ao cultivo de mancarra, milho e arroz, produtos que não chegavam para satisfazer as suas necessidades.
Digno de registo na área social terá sido a construção de moradias para cada uma das famílias indígenas, inserida na política de reordenamento da população idealizada por Spínola, a construção duma mesquita e dum posto escolar e respectivo apoio didáctico através de professor recrutado entre um dos elementos da Companhia (Márinho), assistência sanitária dada pelos nossos enfermeiros e pelo médico do Batalhão, sempre que este se deslocava ao aquartelamento, bem como apoio alimentar através da distribuição regular de arroz pela população.
Sempre que uma coluna militar se deslocava, quer a Galomaro quer a Bafatá, havia o cuidado de proporcionar à população alguns lugares nas viaturas para que pudessem visitar os seus familiares que se encontravam nestas localidades, para fazerem as suas compras (embora o seu poder de compra fosse quase nulo), ou mesmo para darem a simples passeata. Só quando se sabia, à partida, que as viaturas no regresso viriam superlotadas com toda a espécie de géneros, aí essa benesse era banida mas explicada a razão.
Podemos considerar que os militares, após terem terminado os trabalhos de construção do aldeamento, passaram a ser a única “entidade empregadora” da população feminina, que prestava o serviço de lavagem de roupa.
Tudo isto contribuiu para que entre população e tropa se tivesse construído um ambiente de familiaridade sem incidentes de qualquer espécie.

1.7 - Análise da actividade
É digna de registo a forma sacrificada como todos vivemos, no início da campanha, em abrigos subterrâneos e por vezes alagados na companhia de alguns répteis, sem quaisquer condições de vida. Mesmo assim, conseguiu a nossa Companhia entregar-se de forma denoda à construção do aldeamento para a população ao mesmo tempo que decorria a construção do nosso aquartelamento e sem descurar a actividade operacional. Relembro que a equipa de pedreiros e carpinteiros que ajudaram a levantar tanto o nosso quartel como o aldeamento, foram recrutados entre os operacionais de cada um dos pelotões, do que resultou um emagrecimento em efectivos para a actividade operacional.
Na época das chuvas as estradas eram de difícil transitabilidade o que dificultava os nossos movimentos logísticos.
Durante os primeiros 6 meses (até 10 de Novembro 1971) o 4.º Pelotão esteve a reforçar o sub-sector de Galomaro e durante algum tempo, e de forma rotativa entre pelotões, assegurámos a protecção à aldeia de Cansamba. Por tudo isto, o nosso Comandante de Batalhão salientou no seu relatório final “a maneira estóica” como suportámos as adversidades, quer através das frequentes flagelações, quer com o rebentamento das 3 minas a/c que nos causaram 5 mortos, “o que de modo algum quebrou a sua determinação de cumprir a “MISSÃO” que lhe fora imposta, não afectando o seu moral nem a sua capacidade de resistência e de valor combativo”.
Também por parte da Repartição de Operações do Comando Chefe das Forças Armadas a apreciação da nossa actividade operacional nos é favorável, sendo por várias vezes referida pelo Tenente-Coronel Mário Firmino Miguel[3], a “boa e bem orientada actividade geral”, salientando a amplitude de algumas operações realizadas “com efectivos perfeitamente ajustados à missão e à região” onde se desenvolveram. Mas como nem tudo são rosas, também no período entre 12 e 19 de Dezembro de 1971, notaram “precária actividade nocturna”. É que o Natal aproximava-se, e nestas alturas o instinto de defesa fica mais apurado. Ou então: “ausência de emboscadas sobre os eixos de aproximação IN”. Pergunto, alguém saberia quais eram os eixos de aproximação IN? Entre 15 e 22 de Novembro de 1970, “não foi efectuada qualquer acção de reconhecimento ao Rio Corubal”. Para quê? se nós já o conhecíamos tão bem.
A 7 de Abril de 1971, fez o General Spínola uma visita de inspecção ao nosso aquartelamento. O mesmo discordou da forma como estava construído o torreão de defesa que “não estava de acordo com o torreão-tipo aprovado para todo o território”. No seu relatório, em relação a Cancolim, referia: “notei um mau ambiente humano talvez derivado da pouca dedicação do Comandante da Companhia” ... “parece ser uma pessoa doente”. A que tipo de doença se estaria a referir o General Spínola?
A 23 de Janeiro de 1972 chega a Dulombi a C. Caç. 3491 para nos render. Pouco mais de uma semana passada, a 1 de Fevereiro decorre a operação “Varina Alegre” compartilhada por um pelotão da 2700 e outro da nóvel Companhia. Embora fosse uma operação para que os “periquitos” se ambientassem ao cheiro do capim, recordo as preocupações que dela advieram. No regresso alguns militares atearam fogo ao capim, resultando uma queimada de tais proporções, que gerou a desorientação entre alguns dos novos elementos. Depois de muitos esforços de reunião, não se consegue detectar um dos alferes, adivinhando-se que o mesmo tivesse morrido carbonizado. Imagine-se o alívio que todos sentimos quando pelo alvorecer do dia seguinte ele, exausto, nos aparece junto ao arame farpado. Foi uma dupla sorte: o ter aparecido e não ter accionado nenhuma das armadilhas colocadas à volta do quartel.
A 10 de Março termina a responsabilidade da nossa Companhia no sub-sector de Dulombi.
Dia 11 de Março a Companhia parte com destino ao Cumeré para aí aguardar transporte aéreo para a Metrópole, o que vem a acontecer a 22 de Março.

2 - HISTORIETAS
2.1 - Numa altura em que o nosso Capitão tinha ido a Bissau e porque o Alferes Correia se encontrava de férias na Metrópole, eu assumi a chefia da Companhia. Durante a noite aparece-me no abrigo uma “alta patente”, muito esbaforida, alertando-me para o facto de estar eminente o ataque dos “turras” ao nosso aquartelamento, pois tinha visto no ar um “Boro Naice”[4] que seguramente funcionaria como sinal para um ataque concertado. Rapidamente contacto os sentinelas que, para meu espanto, referem não terem visto nada, o que foi corroborado por outros soldados que se encontravam acordados. Depois mais calmo e perante o bafo do visionário, conclui que o tintol deveria ter LSD. Só me apeteceu dar-lhe uma “tufada”.

2.2 - Volta e meia, aparecia no nosso aquartelamento um “foto-cine” que projectava um filme para distracção das tropas. Terminada a sua função e como não estivesse prevista qualquer coluna que o recambiasse, o indivíduo já começava a desesperar. Até que o Alferes Correia (estava na altura a comandar a Companhia) me propôs que levasse o dito a Galomaro no jeep do Comando. Perante o fascínio de dar uma volta a sério, lá me meti a caminho acompanhado pelo “Meirim” com a sua G3 e pelo “Mesquinhata” com o seu morteiro. Hoje arrepio-me ao pensar no perigo em que me constitui e os constitui (embora fossem voluntariamente) só pelo prazer de ter um volante nas mãos.

2.3 - O jeep do Comando tinha a deficiência (uns diriam característica) que se traduzia no facto de quando se virava totalmente o volante para a direita a direcção ficava presa. Um dia, aproveitando tal característica, pus o dito jeep a descrever círculos no campo de futebol, sem que alguém o conduzisse. Fui chamar o Semba para que este me explicasse este fenómeno paranormal. Após alguns segundos de verificação, saltou para o jeep impulsionado como que por uma mola, endireita o volante e grita: “Alfero, era demónio não, era volante preso”.

2.4 - Um soldado a partir de determinada altura desequilibrou, tornando-se extremamente agressivo chegando mesmo a apontar a arma a alguns colegas. Perante este quadro, o médico do Batalhão, Dr. Vítor Veloso, passa-lhe uma credencial para que se apresente nos Serviços de Psiquiatria do Hospital Militar. Qual não é o meu espanto quando passados 4/5 dias, o doentinho já se encontrava em Galomaro, vindo de Bissau e pronto a seguir para Dulombi. Assim que me vê, remata: “Oh meu Alferes, o médico que me atendeu era mais doido que eu” porquê? retorqui. “Então não quer lá saber que me perguntou o que me apetecia fazer naquele momento. Disse-lhe que me apetecia deitar a secretária dele pela janela fora e o que me espantou é que ele se levantou para me ajudar o fazê-lo, pegando logo num dos bordos da mesa. Nunca mais lá ponho os pés”. Na realidade foi uma terapia espectacular, o moço nunca mais deu problemas.

2.5 - Como devem estar recordados, éramos frequentemente visitados por helis, quer para nos trazer frescos, quer para transportar algumas individualidades que nos visitavam. Certo dia, um desses helis estava com dificuldade em pegar. Perante este facto e como o Rosa, que era mecânico, estava a presenciar a situação, o nosso Capitão disse-lhe, a brincar, para ir buscar a mala da ferramenta. Aquele tomou a ordem a sério e lá foi buscar a mala, sem que antes não dissesse “meu Capitão, mas olhe que eu de helicópteros não percebo nada”. Claro, quando o Rosa chegou com a mala já o héli ia ao nível de Duas Fontes. Ficou-me na memória o respeito por uma ordem dada.

2.6 - Naquela fase final em que já não queríamos correr riscos, incumbiu o nosso Capitão o Pelotão de Milícias de fazer um patrulhamento ao Vendu “qualquer coisa”. Passados alguns minutos de terem saído, ouvimos um tiroteio imenso. Logo aquele espalhafato nos pareceu “mise-en-cene”. Quando chegou o Pelotão ao aquartelamento, depois de algum aperto, o Comandante acabou por confessar que não havia turra nenhum e que era só para fazer “ronco” e para puderem justificar uma quantidade de munições que tinham em falta.

2.7 - Certo dia, fumo intenso é detectado a sair do paiol. Perante o eminente rebentamento de todo o arsenal que lá se encontrava armazenado, rapidamente o quartel é abandonado por todos nós para além do arame farpado, não fosse presentear-nos algum estilhaço ou mesmo o sopro que iria gerar. Como passados bons minutos a deflagração não acontecesse, o Alferes Ravasco, perdoem-me mas não encontro neste momento expressão mais apropriada, teve “tomates” e a serenidade necessária para enfrentar a situação. Que acontecera? Um pote de fumos ao cair no chão - que se encontrava alagado - entra em reacção química com a água, gerando o espectáculo que acabo de referir. Chegámos a pensar que seria um acto de sabotagem do inimigo. Pena é que o Almirante Pinheiro de Azevedo, na altura ainda não tivesse pronunciado a célebre frase: “o povo é sereno, isto é só fumaça”. Na realidade vinha mesmo a propósito.
Pote de fumos
2.8 - Em determinada altura, um indígena pretendia reclamar ou peticionar algo junto do nosso Comandante. Como aquele tivesse certa dificuldade em se fazer compreender, alguém sugeriu que se fosse chamar o Carneiro Azevedo para servir de intérprete. Estiveram seguramente cinco minutos numa troca de “jametus”, “tá na mala” e “sapodidis”, arregalando, o “Mamadu”, cada vez mais, os olhos na tentativa de entender o que o Azevedo lhe dizia. Até que passados os tais cinco minutos, o fula chega à brilhante conclusão que aquele arrevesado do Azevedo não seria dialecto fula, mas sim dialecto de Cabeçudos (terra natal do Azevedo).

2.9 – Mal chegados a Dulombi logo se abeirou de mim o Cândido Nunes disponibilizando o seu know-how em matéria de panificação para exercer a função de padeiro da Companhia. Argumentou que em Trancoso era a profissão que exercia. Falei com o nosso Capitão sendo o Nunes admitido de imediato, mesmo sem prestar provas, na função que ele dizia conhecer tão bem.
Ao longo da comissão desempenhou a sua tarefa cabalmente e com o benefício de ser dispensado da actividade operacional a qual encerrava alguns riscos e grande esforço físico, como todos sabem.
No final da comissão, já em Bissau, diz-me: “Meu Alferes, de padaria eu só conhecia o local por lá ter entrado nas poucas vezes que a minha mãe me mandava comprar pão”.
Sorri e dei-lhe os parabéns pela sua astucia.

2.10 - E para acabar. Adivinhem qual era o Alferes que já tinha carta de condução civil e foi tirar a militar só para ter motivo para passar pelo menos mais uma semanita em Bissau? É que aquelas ostras no Pelicano mereciam qualquer estratagema.

[1] Esta lancha viria a tomar parte na célebre operação “Mar Verde”. Com esta operação, comandada por Alpoim Calvão, pretendia-se eliminar fisicamente Sekou Touré, Presidente da Guiné-Conakry, pondo fim ao seu regime e substituindo-o por outro mais favorável aos nossos interesses. No final foi um fiasco, contudo conseguiu-se a libertação os nossos militares que se encontravam presos na cadeia de Conakry. Só por isso acho que valeu a pena, apesar de ter falecido um meu colega de colégio, o Alferes Abílio Ferreira. Já na altura era tão irrequieto que nós o alcunhámos de “turra”.
[2] Não podemos dizer que o inimigo não estivesse bem informado das nossas movimentações.
[3] Chegou a Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, e mesmo a Ministro da Defesa.
[4] Queria referir-se a um Very-Light.

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