sexta-feira, 11 de julho de 2014

P526: AS TRANSMISSÕES EM DULOMBI - SILVA SOARES



A secção de Transmissões era composta pelo Furriel, 2 operadores críptico, 3 radiotelegrafistas e 5 radiotelefonistas ou transmissões.

- Ao operador cripto cabia a missão de tratar toda e qualquer mensagem de forma a não ser perceptível pelo inimigo, caso fosse interceptada, e para isso todo o texto era codificado, e só depois encaminhado. Fazia o contrário, ou seja descodificava quando a mensagem era recebida.

- O radiotelegrafista, tinha por missão a transmissão e recepção de toda a comunicação através do sistema de Morse (telegrafia), estando também preparado para o fazer em Fonia (voz).

- O radiotelefonista ou transmissões, tinha por missão o mesmo papel do radiotelegrafista, mas só através do sistema de fonia (voz).

Na 2700, assim como nas outras duas companhias operacionais do nosso batalhão (2699 e 2701) não funcionava o sistema de telegrafia, e tanto quanto sei, por decisão do comando de transmissões do batalhão. Apenas na CCS o sistema funcionava, e nas redes exteriores (rede de sector, que incluía todos os batalhões do sector leste e ligações com Bissau). Desta forma, e de início, todos fazíamos o mesmo serviço, isto é: serviço de transmissões sempre que havia qualquer saída do acampamento, operações, serviço de posto de rádio etc. Foi precisamente a mim, que pelo número mecanográfico era considerado o mais velho, e pela resistência de todos os restantes elementos da secção em aceitar o sistema de sorteio para ordenar a escala a seguir, e tendo sido decidido seguir-se o método do mais velho, que caiu a sorte de ser o primeiro a dar o corpo ao manifesto e partir para a guerra. AMIGOS, ah !!!. Assim, fui o transmissões de serviço aquando da primeira saída da companhia ao Paiai, aonde o objectivo era montar uma emboscada que felizmente não aconteceu porque o IN estava de férias. Também estive na  primeira operação ao Jifim, tendo feito mais alguns serviços do género, mas já seguindo a ordem de saída.

A partir de determinada altura, e isto ainda com pouco tempo de comissão, e por ordem superior (não sei de quem) o serviço de rádio tinha de estar activo 24 horas sobre 24, o que até aí não acontecia como é de ver. E, então, essa tarefa ficaria a cargo dos telegrafistas, enquanto os telefonistas ficariam só com o serviço de exterior. E assim foi até ao fim da comissão. Entretanto, por volta do 4.º / 5.º mês de comissão, acontece a morte de um dos telegrafistas da CCS por afogamento no rio Corubal, no Saltinho, tendo o Oficial de transmissões ordenado a minha deslocação para Galomaro até que chegasse um elemento de rendição individual para seu lugar, onde estive cerca de seis meses, o tempo que levou o indivíduo a chegar e a estar apto a render-me.

O tipo de aparelhos que tínhamos ao nosso dispor:

Para além do RACAL
que era sem dúvida o mais conhecido, até porque foi o aparelho utilizado durante mais tempo, tínhamos, creio que dois SHARP, que eram uns aparelhos bastante pequenos, quase tipo rádio de bolso, e que se destinavam a transmissões de curto alcance e que na prática pouco foram utilizados, até porque não se lhes era reconhecia grande utilidade. Depois havia o AN-PRC10,
que juntamente com o CHP-1,
o popular banana, foram os rádios de serviço durante os primeiros tempos. Ambos podiam funcionar com antena incorporada, ou ligado a uma antena fixa. Certamente ainda alguém se lembrará duma dessas antenas montada sobre uma árvore ao lado do abrigo de transmissões durante a primeira metade da comissão, mesmo ao lado da tabanca do chefe do Paiai, e por detrás do forno de cozer o pão. Havia, ainda, os DHS e DHS-1,
que eram precisamente o mesmo aparelho, só com a diferença de o DHS-1 ter amplificador e daí um poder de alcance maior que o DHS. Também não foram muito utilizados, porque entretanto, chegou até nós o RACAL. que foi sem dúvida o último grito à altura no sistema de comunicações, já que para além de ser um aparelho novo (o único), era também de fácil manejo, e trabalhando no sistema de canais e em frequência modelada, não sofria qualquer interferência causada quer por situações atmosféricas, ou outras. Depois, havia, está claro, o famoso AN-GRC9,
que segundo reza a história, foi estrela durante a segunda guerra mundial, e que está claro, tinha de vir parar ao Exército Português. Era um aparelho enorme que só se podia utilizar fixo, ou então instalado numa viatura. Era o emissor/recetor usado pelos telegrafistas no sistema de morse, mas também no sistema de voz. Tinha um longo alcance, e era através dele que fazíamos a ligação com Bissau para serviço de emergência, evacuações, etc.

Era um aparelho complicado, porque era composto por duas partes distintas: a parte superior que era a maior, era o emissor, sendo a parte inferior o receptor, e para que funcionasse  era necessário sintonizar as frequências de ambas as partes, o que muitas vezes era problemático sobretudo se houvesse nevoeiro, trovoadas, ou bastante humidade. As interferências eram de tal ordem que chegavam a impossibilitar qualquer transmissão ou recepção, e deram origem a cenas terríveis como aconteceu naquele fatídico dia 10 de Agosto de 1970, em que sofremos a 1.ª baixa, o CARRASQUEIRA. Tendo sido recebida via rádio a informação do sucedido, com a existência de feridos graves e mortos, e dado de imediato conhecimento ao Capitão que ordenou  o pedido de evacuação, por mais que se tente não é possível a ligação, não só com Bissau mas também com Galomaro para que pudesse servir de intermediário no pedido de evacuação. É o desespero dentro daquele acanhado posto de rádio com o Capitão, Furriel enfermeiro, Rico, pessoal de transmissões, ... tudo numa luta de doidos, mas ... o velho  AN-GRC9 não colabora. Até que o pessoal começa a chegar ao acampamento, e toda a gente vai saindo para se inteirar da situação e para ajudar no que pudesse. Fiquei eu, que estava de serviço, mais um outro colega que não me recordo quem, recordo sim que depois de mais algumas tentativas sem resultado, agarrei o rádio por aquele sistema de tubos exteriores, dei-lhe duas valentes abanadelas contra a barreira do abrigo e foi também juntar-me ao restante pessoal que já tentava desesperadamente salvar o CARRASQUEIRA. O furriel enfermeiro que gritava como um louco: "CARRASQUEIRA NÃO MORRAS, CARRASQUEIRA NÃO MORRAS". Pediu voluntários para a respiração boca a boca, a que eu não hesitei, embora nunca o tivesse feito, só que ... o CARRASQEIRA não aguenta e ... apaga-se. A partir daqui, foi o que toda a gente sabe... Coincidência?...   Agora que já nada havia a fazer, o velho e teimoso aparelho está em condições de fazer o que for necessário. Certamente que não foi por se ter conseguido ou não fazer a ligação na devida altura que as coisas aconteceram como aconteceram, mas que é frustrante, e que nos deixa com um sentimento de culpa, sem a termos, também é verdade.

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